26 jan 2016

O dia em que me coloquei em uma prisão

LIFESTYLE > Resignifica

Oi! Me chamo Laura, tenho 65 anos mas não sou uma pessoa real e vou explicar o motivo.

velhiceFoto: Pixabay

Tive uma infância maravilhosa, um lar incrível. Nunca tive nenhum motivo para não acreditar na família. Casar fazia todo sentido para mim e ser feliz no casamento era para mim tão certo quanto o sol nascer todos os dias.

Casei jovem, como todas as moças da minha geração. Tinha 16 anos, cursava o Ensino Médio e embora estivesse convicta de que queria ser professora e escrever um livro, casar com 16 anos não parecia ser algo que atrapalharia os meus planos. Aliás, ninguém da minha geração achava que casar era impedimento para nada e se achava não dizia. Era algo natural.

Meu marido era uma pessoa especial. Tinha 23 anos quando nos casamos, muito trabalhador, comunicativo e com todos os encantos de um jovem dessa idade. Não fez faculdade porque poucos jovens naquela época tinham essa oportunidade e porque prestar vestibular não era algo assim tão popular. Naquela época as pessoas se preocupavam mais em pagar as contas do que trabalhar com algo que se ama e o máximo que a maioria fazia era se aperfeiçoar com os próprios aprendizados do dia a dia e tentar ao máximo seguir essa carreira até se aposentar.

Eu com 16, ele com 23 e casados. Tudo parecia ir bem, exceto o meu desespero diante do novo. Vejo as minhas netas com 16 anos e lembro do quanto minha vida foi diferente. Minhas netas conversam com as amigas pelo WhatsApp, vão para escola, falam de carreiras, de namoros e dos shows que pretendem ir no final de semana. Elas voltam para casa depois da aula e encontram o almoço pronto e se estão sem muita vontade de conversar, vão para seus quartos fazer coisas legais como dançar na frente do espelho, assistir seriados, passar horas no Youtube. Vivem intensamente seus 16 anos.

Não me lembro de ter tido um dia assim na minha adolescência, aliás, não me lembro de um dia tão intenso assim em toda a minha vida. Eu só me lembro do meu desespero diante da tamanha responsabilidade que chegou quando eu ainda era nova e do desespero diante da cobrança explícita da sociedade de que deveríamos ser capazes de ser as heroínas da nossa casa.

Nossa casa… Como era estranho pensar nela. Fui uma criança que sempre ajudou minha mãe nas tarefas da casa e me sentia bem fazendo isso. Era como se estivéssemos brincando e era legal ver minha mãe contar para as pessoas que eu a ajudava, me fazia sentir importante. Mas uma coisa é ser parte da brincadeira e outra coisa é ser a que não pode mais brincar.

As atividades da casa pareciam grandes desafios para mim. De repente me vi perdida entre quartos, sala de estar, cozinha e área de serviço. Me sentia um desses estagiários de hoje em dia que chega em uma empresa e parece que todos esperam dele grandes experiências e destaques. Eu não sabia se limpava a casa ou cozinhava, se me tornava mãe ou continuava estudando, se podia ser adolescente ou se já era tarde demais para isso.

Não deu 1 ano e eu engravidei. Foi um dos momentos mais incríveis da minha vida mas que terminou de me desestabilizar emocionalmente. Agora eu era uma jovem de 17 anos, mãe, casada, que deixava os estudos e os sonhos para uma carreira para me dedicar totalmente ao lar e a maternidade e não demorou muito eu já tinha 3 filhos. Parecia a decisão correta e foi para todos. Menos para mim.

Se por um lado era bom ver todo mundo bem devido a minha grande dedicação em fazer as coisas em casa funcionar, era bem frustrante me ver como uma secretária de todos sem direito a uma vida própria.

Meu casamento foi ficando cada vez mais desgastado. Fora o fato de sermos 2 jovens aprendendo da forma mais difícil a ser adultos, meu marido era uma pessoa agressiva e impaciente. Jamais ousou uma agressão física mas suas palavras eram suficientemente dolorosas para causar em mim traumas que aos 65 anos ainda não superei.

Tenho muito medo de pessoas que não sabem dosar suas palavras num momento de raiva porque essas pessoas conseguem em segundos destruir algo que levamos uma vida para construir: a autoestima. E quando te roubam a autoestima, roubam o sentido da sua existência, roubam os seus valores, o seu amor próprio. Quem faz isso leva consigo a sua alma, algo que talvez você nunca recupere.

Pior do que isso é o que pessoas assim nos fazem desejar. Meu marido tinha a especial habilidade de despertar em mim o desejo de que ele morresse. Eu tinha tanto medo de uma separação – Como me sustentar? Onde morar? Como sobreviver? Quem me aceitaria de novo junto com meus filhos? Alguém se casaria comigo de novo? – que para mim a única forma de solucionar isso seria ficar viúva.

Que coisa horrível é não ter o domínio da própria vida. Que coisa horrível é se perceber tão impotente. Que coisa horrível é ser encarcerada pelos seus próprios medos.

Eu jamais matei o meu marido mas fui capaz de deixar de existir. Eu fui capaz de permitir que me rotulassem, que me desestimulassem a viver os meus sonhos. Eu fui capaz de ajudar a todos mas nunca fui capaz de me dar uma mão. Jamais me permiti descansar, ter uma tarde livre, férias, um dia longe da cozinha, um objetivo pessoal. Jamais fui capaz de ir embora do meu relacionamento e foi justamente isso que jamais me permitiu continuar nele porque somente somos felizes quando estamos por inteiro num lugar.

Meus medos me paralisaram, a falta de amor próprio me aprisionou e hoje me vejo com 65 anos, idade em que as pessoas se aposentam e que ironicamente pareço declarar o fim de uma vida que eu nunca tive e que embora os mais românticos possam dizer que nunca é tarde para recomeçar, isso jamais apaga o fato de que tempo perdido não se recupera e de que passei muitos anos sendo uma Laura que eu não queria mas que de alguma forma eu aprendi a ser, e agora é muito difícil ser a Laura que eu queria porque tenho manias e frustrações em excesso.

Você ainda é uma pessoa?

*Essa crônica foi baseada em histórias que eu já escutei de pessoas mais experientes.

Foto: Pixabay

 

Fê La Salye
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Comentários

4 comentários em "O dia em que me coloquei em uma prisão"
  1. Márcia Virgínia Araújo Peixinho   19/04/16 • 08h51

    Vi neste texto o retrato de tias e algumas primas que ainda se permitem está submissão. Graças a Deus minha mãe não passou por isto pius desde cedo foi guerreira. Parabéns!

    • Fê La Salye   22/04/16 • 12h20

      Tao complicado passar uma vida toda para descobrir que nao viveu né? Que a gente nunca se permita isso. Bjs

  2. Eli Monteiro   19/04/16 • 09h15

    Fê vc como sempre nos fazendo pensar e pigmentado nossa vida com coragem e autoestima. Tu não imaginas como me ajudas. Mil beijos quero um dia te conhecer!

    • Fê La Salye   22/04/16 • 12h21

      Eli, que fofa! Fico mesmo MUITO feliz em compartilhar minhas experiências e inspirações e saber que de alguma forma elas ajudam alguém. Obrigada pelo carinho e que a gente se conheça um dia. :)

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